domingo, 5 de maio de 2019

Não te negues a Falstaff

Beberrão, corpulento. Corpo lento onde se esconde, sob a máscara da Falstaff, meu verdadeiro eu.
Perdoe-me, meu senhor, por sê-lo. Perdoe-me, senhor do meu peito, não ter a dignidade de tua adoração, pois como pândego meu espólio é a alcunha do velho boêmio. Falstaff é, no entanto, doce e alegre; assim posso eu ser-te.
Renego minha coroa de louros, guardo minha luz para andar na tua escuridão, senhor, com a figura simples de um velho que não te causa transtornos de inveja ou assuntos sóbrios demais à tua alma cansada.
Ah! Doce Falstaff, alegre Falstaff, fiél Falstaff. Não, não te exiles do velho, eu imploro como o velho, originalmente, rogou ao seu príncipe. Não te exiles de Falstaff, ou terá te exilado do mundo inteiro.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

terça-feira, 26 de dezembro de 2017


Hoje fiz uma curva em meu caminho, andei pelas ruas do meu passado.
Era um dia morno, como eu, naquele instante. Sem umidade que verte de nuvens ou calor que excita o sol sobre nossa pele.
Achei um dia prudente; porém, ao dobrar a esquina, vi o meu ontem já um tanto distante, chorei tal qual criança sem colo.
Um choro santo que evocava tudo o que de melhor havia, ou há, em mim.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Cósmico


Porque metade de mim é belo.


Estas luzes que batem em minha retina fazem-me ver um mundo tão colorido. Que contraste! Que contraste ao negro supremo que habita em mim. Às vezes basta apenas isso: uma faísca. Uma pequena centelha que ilumina o peito, ela escorre por todo o resto; cintura, virilha, pernas, pés. Expande; ombros, braços, mãos, pescoço, cabeça; fios de cabelo. Todo o negro se ascende.
Tomo algo, respeitando meu corpo, para que minha mente flane pelas paredes do meu eu. Um shot flutuante. Plena, ao som de uma batida posta, a meu gosto, para admirar as estrelas no concreto que fecha a cúpula. Cúpula alcova, cúpula cabeça.
As pernas já não me fazem parte, têm elas agora vida própria e me levam ao chão. O som vibra por todas as paredes, de pele ou cimento, enquanto as luzes salpicam a escuridão.
Penso no amor não retribuído. O que me causava dor agora me deixa completa. Não obstante a rejeição, você se basta – penso. Você é tudo o que precisa e o que quer. Você está no centro e você é o seu próprio mundo, mesmo diante da natureza indômita de seus impulsos. Reverencia-os com vênia, é preciso respeitá-los – assim concluo.
Vá!
Porque metade de mim também é belo.
A poeira da explosão cósmica questiona minha realidade pária, chega a mim com vida, resplandecente, iluminada, fruto de algo que há milhares de anos já não vive mais. O que estava morto ontem reverbera vibrante e vívido aos olhos. Talvez seja essa a dinâmica dos meus sentimentos.
Vamos ficar aqui, minhas fagulhas e eu, até que o céu se abra. Vamos ficar até que um pequeno raio solar entre pela fresta de minha janela e sugue para si toda a poeira das estrelas mortas, como farelos de ouro, subindo, seguindo cegamente a luz.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Cara, eu te conheço há muito mais tempo do que eu imaginava. Quero dizer, deve ser você, nenhuma outra pessoa conseguiu me enganar, todas eram claramente vazias.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Ensaio ao Marquês II


       Dos milhares de espermatozoides repousados nos testículos de Bukowski, e, ejaculados em alguns pares de barrigas de aluguel, pariu-se, cada qual a seu modo, em alguns cantos do globo, algumas dúzias de Jeannie Nitro.
       Saiu às ruas, o corpo celeste pusera-se a oeste há algumas horas. A cidade era iluminada por sóis amarelados e artificiais; viu um letreiro vermelho e entrou no purgatório.
       Não enxergava muita coisa com as luzes apagadas, embora, entre os flashes, conseguisse perceber a moda das mulheres; usavam saias curtas, algumas, em seus rebolados, era possível ver a polpa de sua... fruta. No disparo das luzes estroboscópicas, avistou dançando perto do bar, Jeannie, uma velha amiga. Na verdade, Jeannie ainda era jovem, quem estava velho era ele. Decidiu se aproximar, a moça logo o percebeu, fez sinal com a cabeça e sorriu mostrando uma arcada dentária perfeita. Jeannie tinha uma roupa comportada, se comparada com as demais moças, mas também mostrava longas e lisas pernas que logo se enroscaram nas dele. Com os quadris colados, sem se importar com a exaltação de (...), Jeannie passou seus dedos de veludo por todo ele. Tudo era convulsivante, os disparos das luzes eram como pancadas na sua cabeça. Vamos sair daqui, nem tenho mais idade para isso – ele disse. E decidiram ir embora.
       Já em sua casa, sentou-se na beira da cama, perto da cômoda, enquanto Jeannie utilizava o banheiro. Instintivamente olhou para o lado, a presilha já fazia parte da decoração em sua cabeceira; bagunçada, ao lado de seus óculos. Era rosa, de plástico, o mau gosto do acessório era acompanhando, sem dar importância, pelo jeito de vestir da dona. Era assim que se lembrava, segundo as raras vezes que se viram e se deitaram. O corpo não era atlético como o de Jeannie, seus únicos gomos lhe eram umas poucas sobras de pele. Os olhos, por sua vez, o feriram a cada encontro. Era um disparate imaginar que eles poderiam saber mais que os seus próprios. Eram de canto, baixos, ou pior, fixos. Subliminares, dissimulados em ironia, perversos em dialética. Porra! Carregavam muita informação.
       Acendeu um cigarro – você podia me amar, menina – disse a si mesmo – só para minha vaidade.
                - Por vaidade mesmo?
                - Do que você está falando, garota?
                - Quer ser meu amor?

        Teve vontade de esfolar aquele rosto de porcelana – “Quer ser meu amor?” Cacete! –, pensou em mandá-la embora, mas apenas acenou a cabeça.
                - Deita aí.

Ensaio ao Marquês

Tinha, há muito tempo, decidido não escrever sobre amor. Mas não era amor propriamente dito; romantismo lhe cansa, achava um tema clichê. Em todos os cantos os aspirantes só falavam disso, e muito mal. Apenas o ler daquela conjuntura de palavras grudentas entre si fazia irromper a glicose de sua arteria aorta, supondo que sim, havia um pouco de doçura naquele coração, circulando por toda e qualquer corrente que lhe pulsasse sangue, inundando suas células de gordura e um tipo de proteína nociva. Era uma overdose! Uma verdadeira saturação. Sua diabetes subia e sentia uma espécie de glaucoma nas vistas.
Jogou os óculos na cômoda bagunçada onde jazia a presilha esquecida dela. Ponderou jogá-la no cesto de lixo, antes deu uma última olhada. Lembrou-se de alguns detalhes; sorrisos, dentes, olhares. Fez pinturas lascivas deles em sua memória, pôs e tirou a mão da calça. Emergiu em considerações.
Nas vezes subsequentes os lábios ficariam mais sedosos – ele pensou – a língua mais solta e os dentes mais travessos. Toda uma pele frisante e senciente. Ele teve saudade, provavelmente um pouco tarde, dos lábios pressionados em seus.
Em seus próprios, em seu ouvido, em seu peito, em seu tórax, em seu estômago, em seu, em seu, seu...
Guardou com cuidado a presilha.

domingo, 3 de junho de 2012

O anti-herói

Puta merda, despertador! Às vezes acho que odeio você. Na verdade, acho que a contagem de tempo me irrita um pouco, embora admita sua necessidade. Estou atrasado, vou me enfiar logo naquela armadura. Nossa! Vou fritar nesse sol. Vamos, vamos, preciso comprar uma coleira que já venha com o nó feito. Pronto! As chaves? Onde estão minhas chaves? Puta merda, chaves! Pense, pense... Onde foi a última vez que você mexeu nelas? No banheiro, depois de chegar do bar ontem, tirei-as do bolso para um banho. Banheiro! Preciso escovar os dentes, devo estar com um hálito de comida de urubu. Certo, sapatos, meias, paletó, camisa, calça, gravata, dentes e chaves. Relógio, que horas são? Bom, deveria ter saído há dez minutos. Agora me fale, na verdade, qual é a diferença de 10 minutos na vida de uma pessoa? Afinal, não estou no meu leito de morte – uma ironia esse pensamento, me sinto indo ao matadouro todos os dias de manhã quando vou para o escritório. Nossa, rapaz, olha esse trânsito. Aquela estúpida da Ana, que fica o dia todo construindo a fazendinha do Orkut vai me arrancar o couro. Ela faz isso para demonstrar trabalho: cobra de outros o que não faz para lucrar e fingir que sua gerência atinge metas. Já vi que vou tesourar e costurar os carros o caminho inteiro, vou xingar e ser xingado por uns dez motoristas. Vamos lá, Pedro, você consegue. Certo, depois de buzinas, fechadas e dedos do meio, chego ao trabalho vivo e só aqueles dez minutos atrasado. Já começamos os dias bem tranquilos nessa cidade. Acho que vou mudar para o interior, sei lá, virar fazendeiro, cansei de ser boi. Cheguei na empresa. Agora só falta achar um lugar para estacionar. Talvez se o estacionamento fosse mais barato ou meu salário melhor, eu pudesse guardar meu carro no estacionamento daqui, infelizmente não é o caso. Saco, dez minutos atrasado e já se encheram as vagas. Meu, a Ana vai me matar. Ali, uma vaga. Espera um pouco tem uma placa de proibido estacionar. Eu nunca sei o onde é o começo e o término dessas placas, até o meio eu me confundo nessa. Acho que aqui é o fim, tenho quase certeza. Vamos lá, não tenho muito tempo para pensar. A vaga nem é tão perto da empresa, vou ter que correr. O dia mal começa e eu já estou fedendo igual a um pedreiro que passou o dia numa obra de construção. Bom, agora que cheguei na empresa, é só correr, sentar na mesa e rezar para no caminho não esbarrar com... Ai, caramba! Olha a Ana vindo ai, e eu nem passei pela recepção ainda. – Bom dia, Pedro! – diz – Está atrasado. Por favor, evite que isso aconteça ou vamos começar a somar seus minutos e descontar do Hollerith. – Um ótimo dia para você também, Ana. Fuzilo Ana com severos disparates infames. É lindo, ela me chama de ogro aos prantos antes de sair correndo, tropeçar e cair de pernas para o alto, com aquelas canelas carnudas balançando. Claro, tudo isso na fantasia da minha mente. Concentre-se, Pedro. Devaneio à parte vá sentar-se na sua mesa. Mal sento quando vejo a cabeça de Ricardo sair por cima da repartição de Eucatex que separavam os setores da empresa em uma série de cubículos. – E aí, Pedrão. Já levando um “bom dia” maravilhoso da nossa queridíssima Ana? – Ricardo diz para mim com escárnio. – Ricardo, não há nada mais doce no mundo do que as palavras soltas pelos lábios da Ana. – Se vê que é bem doce mesmo, ela está precisando de um aspartame ou qualquer coisa assim. Ricardo é a pessoa que mais gosto na empresa, um maluco do departamento de marketing, descolado, franco e com um sentimento de humanidade alheio ao resto das cobras desta empresa. Isso deve ser dádiva de espíritos criativos, que enxergam o mundo de outro modo além da cobiça. Talvez nos déssemos bem por conta disso, embora Ricardo seja dotado de muito mais senso de humor do que eu. Fora ele, tenho outros colegas de trabalho, é preciso fazer um network por aqui, e a política da boa vizinhança é muito mais válida para os vizinhos de repartição do que para os vizinhos de rua. Por algumas pessoas é possível sentir uma sincera empatia. É claro, sempre têm algumas piores que as outras, ou são, para mim, simplesmente indiferentes. Por falar nisso... Ih! Lá vem aquele cretino desdentado do Felipe. Tá certo, ele não é um completo desdentado, lhe falam alguns dentes da parte inferior da mandíbula que o obriga a usar uma ponte, uma espécie de dentadura. Felipinho, como é chamado, é o tipo de cara que quando se olha, acomete-se por uma compaixão, mas depois que o conhece, entende-se o motivo de não ter os dentes. Provavelmente não mais por falta de higiene do que um chute na boca. Não tem outra explicação para aquela prótese, o cara nem é muito mais velho do que eu. Deve ser a convivência com a Ana, todos os dias os dois saem para almoçar juntos, e, ambos, não veem a hora de arranjar algum pretexto para puxar o tapete de alguém e promovê-lo. Nada mais justo para Ana; ele seria seu comparsa de trabalho, executaria os mesmos serviços que os seus, ou seja, nenhum. Sou uma pessoa muito ruim por pensar esse tipo de coisa? Não, acho que a sociedade é meio doente mesmo, e depois eu é que devo gastar meu suado dinheiro com remédios caros e terapias. Na verdade nenhum medicamento psicotrópico cura enfermidades sociais. Com certeza, o dia de alguém que trabalha, passa muito mais rápido do que o de alguém que fica enrolando, embora seja extremamente menos divertido e mais maçante. Este dia está sendo muito longo e, agora, praticamente nos minutos finais estoura uma bomba causada justamente pela classificação desatenta deste segundo tipo de pessoas. Três de nossos containers ficaram embargados na alfandega internacional por um erro em sua nota fiscal. Isso vai gerar em um belo de um abacaxi na gerência da Ana. O pior, para a coitada, que caminha agora aos berros para o departamento de exportação: a nota havia sido emitida por Felipinho. Estou vendo o desespero na cara do homem enquanto Ana se aproxima, e sei da sua total falta de despreparo para resolver a questão. Aquela compaixão com o banguela está se apoderando de mim, e até por Ana. Na empresa, e talvez em suas vidas vazias, tudo o que eles têm é um ao outro, aquilo poderia abalar o relacionamento daquelas pessoas. Por um segundo achei que eles fossem dignos da minha pena. Ana se aproximava cada vez mais, com um olhar de raiva e decepção, fixado em mim, e com certa melancolia, em Felipinho. – Muito bem, eu quero saber quem foi o causador desse prejuízo – diz Ana aos berros. Felipinho já estremecia quando eu tomei a palavra. – Ana, pode deixar, já vou entrar em contato com nossos clientes no exterior, vou dar um jeito nisso, o máximo que poderemos ter de prejuízo é a tarifa do espaço onde os containers ficarão locados até serem liberados. Pelo que conheço do cliente, não deve demorar mais do que um ou dois dias. – Então, foi você, Pedro? – no fundo Ana sabe que não, mas mesmo assim balbucia algumas grosseiras quem nem faço questão de escutar e, mais aliviada, vai embora. Felipinho esta atônito, com cara de idiota, para dizer bem a verdade. Acho que a pobreza de espírito dos dois não esperava algo do tipo. – Isso é para ver se você aprende alguma coisa, Felipe. Ao dizer isso, o homem balançou a cabeça incrivelmente com uma cara de idiota pior ainda. Meus dez minutos atrasados foram transformados em duas horas a mais, mas finalmente saio da empresa e me dirijo à rua onde está meu carro. Mas que droga! Meu carro foi rebocado, era início da área para não estacionar. Não acredito no dia de hoje. Agora vou precisar caminhar até o metrô e de lá, na estação Santana, ir para casa a pé. Quero acabar logo com o dia de hoje, amanhã resolvo esse negócio do carro. Sapatos, vamos dar uma volta, finalmente vou gastar um pouco destas solas. Eu não sei se foi o dia estressante, o esporro, ou algo que valha, mas estou começando a me sentir deprimido. O tempo está mudando e encostado perto da vaga onde estaria meu carro, há um morador de rua, isso me deprime ainda mais. Vou tirar meu paletó e jogar sobre seu corpo. Olha aí, campeão. Um presente para você – ai caramba, o homem deitado no chão acordou e está gritando, acho que sua realidade é um bocado hostil para aceitar gentilezas. Só me falta ser agredido hoje. Ufa, parece que ele entendeu a situação. Agora ele ri e diz: “Olha! Olha moço, como fiquei elegante”. O filho da mãe tem mais dentes do que o Felipinho. Já é noite e o asfalto da avenida parece transpirar. Garoa em São Paulo, este suor das ruas é só o choro fraco das nuvens que cai sobre elas. Devo colocar as mãos nos bolsos e comprimir os ombros para evitar o frio. Há uma poça de água que reflete a lua. Por que não olhar diretamente para ela, ao invés dessa poça? A vida é sempre assim, por medo olhamos o reflexo de algo enquanto deveríamos estar o encarando diretamente, poderíamos encontrar o belo. Parece que sempre olhamos para baixo. Caramba, mas que dia. E hoje ainda é segunda-feira. Finalmente, chego ao meu prédio, cumprimento o porteiro, entro no elevador. Enfim, em casa. Fuço os bolsos da calça para pegar as chaves. Onde estão as chaves? Puta merda, estavam no bolso do paletó.



Autor: Thalita Noce
Publicado no espaço do leitor da revista cultura. :p

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

"Você parece não se importar com os conflitos dos fios de cabelo entre si, brigados com o pente, por consequência, que habitam minha cabeça. Tampouco parece se preocupar com meus dentes amarelados de nicotina ou com as canções roucas que minhas cordas vocais lhe oferecem – Nos meus sonhos você disse que me amaria desse jeito, e pediu para que eu tirasse as mãos dos bolsos para te abraçar.
(...)
Estamos deitados no chão, próximos a janela, olhando como a poeira parece uma chuva de ouro; chuva inversa, que sobe, como se o sol sugasse de volta suas partes. Esse tipo de inversão é tão típica do nosso universo particular, tão similar a nós."

domingo, 12 de junho de 2011

Diálogo em um Ato


Ato I

Personagens
Pedro Henrique: Matemático
Rita: Dona do bar Speranza
Rodrigo: Filósofo

ATO I

Cena I

(Do meio de uma multidão, simulada por um sons e um telão no fundo do palco, entra Pedro Henrique que caminha para uma viela tranquila enquanto fala consigo mesmo.)
Pedro Henrique: (assustado olhando para trás) Como posso me sentir isolado e com claustrofobia ao mesmo tempo? Talvez este seja meu problema: eu penso demais. Deus, quanta gente. (reflexivo) Talvez eles estejam pensando também. Mas, eles pensam em quê? Quem sabe eu pense alto demais. O que eu necessito é não necessitar; é viver o momento.
(Pedro Henrique desce as escadas de uma taberna, guiado por um letreiro em azul neon escrito “Speranza”. Senta-se nos bancos altos do balcão, ao lado de Rodrigo, pede um café, tira um jornal de sua maleta e começa a rabiscar. Pedro Henrique demonstra um semblante exaltado com o que rabisca até ser quebrado por uma expressão de decepção)

Rodrigo: O que foi, filho? Não conseguiu chegar ao resultado da conta?
Pedro Henrique: (introspecto) Não, não consegui.
Rodrigo: Parecia muito importante para você chegar a essa conclusão.
Pedro Henrique: Sim, é o trabalho de toda uma vida.
Rodrigo: Toda uma vida baseada em uma conta?
Pedro Henrique: (coagido) Sim
Rodrigo: Mas, baseado em que acha isso possível?
Pedro Henrique: Sou um matemático teórico, acredito que a matemática é a linguagem da natureza.
Rodrigo: Certo, e...?
(Pedro Henrique adiciona uma colher de açúcar ao seu café)
Pedro Henrique: Está vendo esse espiral que o açúcar fez em meu café?
Rodrigo: Sim, vejo.
Pedro Henrique: A natureza provou que em tudo nela há padrões, não é uma reta linear mas, uma repetição cíclica. Algumas evidências são os ciclos das epidemias, os ciclos das manchas solares, as cheias e baixas do Nilo... Acredito que eu possa achar um padrão para o universo calculando o seu número, o número da circunferência, do PI.
Rodrigo: E daí você se anteciparia a tudo? Teria todas as respostas?
Pedro Henrique: Sim! Acredito que tudo o que rege o mundo parte de um mesmo mecanismo, só variando de escalas maiores e menores. Basta ter a resposta de um padrão para entender o todo.
Rodrigo: (brincando) Santo Deus, que papo maluco, garoto! (escárnio) Rita venha cá, me traga uma dose bem forte, vou precisar para escutar essas teorias. (Rodrigo volta a falar com bondade) Garoto, você já ouviu falar no jogo de tabuleiro go?
Pedro Henrique: Sim, já joguei algumas vezes.
Rodrigo: Os japoneses consideram o tabuleiro do go um microcosmo do universo, embora vazio ele pareça simples e ordenado, as possibilidades de jogadas são infinitas. Dizem que nunca houve duas partidas iguais. Portanto o tabuleiro do go, representa um universo complexo e caótico. E essa é a realidade do nosso universo, rapaz, não pode ser definido pela matemática, não pode ser definida por uma simples ordem.
Pedro Henrique: (contrariado) Mas quando o jogo avança as possibilidades diminuem e surge-se um padrão, as jogadas podem tornar-se previsíveis.
Rodrigo: E daí?
Pedro Henrique: E daí que mesmo que não sejamos sofisticados o suficiente haja um padrão subjacente a cada jogada.

Cena II
(Rita, a dona do bar, com seus 48 anos de idade, etnia latina e muito bem conservada voltava ao balcão com uma dose a Seu Rodrigo)
Rita: (sorrindo) Aqui está sua dose, Seu Rodrigo.
Rodrigo: (condescendente) Como está seu dia hoje, Rita?
Rita: (irônica) Cada dia se aproxima ainda mais do dia que terei de fazer isso outra vez.
Rodrigo: Está se referindo a repetição dos dias?
Rita: (com um ar de cansaço) Bendita rotina! (pausa reflexiva) Tenistas comem bananas!
Pedro: (confuso) O quê? Tenistas e bananas?
Rita: Os esportistas achavam que deveriam comer pedaços de laranjas, então alguém pensou em banana. Potássio. Pronto! Sem câimbras.
(Rita faz uma pausa para servir uma dose a si mesma)
Rita: O que eu quero dizer é que talvez, apenas talvez, em alguns aspectos de nossas vidas nos estamos comendo laranjas quando deveríamos estar considerando a hipótese de comer bananas,
Rodrigo: Entendo o que quer dizer.
Rita: (sorrindo) Você é um intelectual, Seu Rodrigo.
Rodrigo: Você está dizendo isso apenas por dizer.
Rita: (irônica) De que outra maneira poderia me comunicar?
Rodrigo: Então, rapaz você está querendo se tornar um deus com a sua matemática?
Pedro Henrique: Seria muita audácia. Quero dizer, essa coisa de ser Deus.
Rodrigo: Acho que nosso ponto de vista, no mundo contemporâneo, é fácil acreditar que a ciência vai tomar o lugar de Deus. Mas, alguns problemas filosóficos irão continuar dando trabalho, como o problema da vontade livre. Este problema existe há muito tempo, desde antes de Aristóteles, em 365 antes de Cristo. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, esses homens ficavam preocupados em como podemos ser livres, se Deus já sabia tudo o que íamos fazer.
Pedro Henrique: Estaríamos sempre um passo atrás, como se nossos movimentos fossem premeditados.
Rodrigo: Sim. Hoje em dia sabemos que o mundo funciona de acordo com algumas leis físicas fundamentais, e essas leis governam o comportamento de cada coisa no mundo. Agora, essas leis porque são tão confiáveis permitem incríveis avanços tecnológicos. Mas, olhe para você: também somos sistemas físicos, não é? Também somos combinações complexas de moléculas de carbono. Somos maioria água e nosso comportamento não vai fugir a esta regra. Então, começa a parecer, se Deus já planeja tudo com antecedência ou se essas leis físicas básicas governam tudo, que a livre vontade não passa de uma utopia.
Pedro Henrique: Por isso eu lhe digo, deve haver um padrão. Não concorda?
Rodrigo: Não gosto dessa ideia. Isso é uma agressão à concepção de quem você é. Você só pode ser admirado ou censurado pelas atitudes que toma pela vontade livre, a vontade própria.
Pedro Henrique: (taciturno) Estas questões apenas estão emancipando minhas dúvidas.
Rita: Rapaz, você pensa demais. Procura respostas demais, quando na verdade deveria estar se divertindo. Um jovem tão bonito, aposto que não tem uma garota esperando por você, só números. Estou certa?
Pedro Henrique: (tímido) Sim.
Rita: Há quanto tempo não se diverte? Não sente prazer nas coisas além dessa obsessão por respostas, conhecimento? Você sai e consegue se divertir? Aposto que se sente inquieto em uma roda de amigos.
Pedro Henrique: Sim, parece-me perda de tempo.
Rita: Cuidado! Cuidado! Já escutei muita história de homens assim, que simplesmente esqueceram a verdadeira beleza, as pequenas coisas, e quando viram, estavam queimando seus livros se perguntando o porquê de se perguntarem.
(Rodrigo gargalha)
Pedro Henrique: Não sei o que pensar, Senhor.
Rodrigo: Ninguém nunca sabe.
Pedro Henrique: Deve haver um padrão.
Rodrigo: Deve haver uma razão.
Pedro Henrique: (com certa agonia) Santo Deus!
Rodrigo: Rapaz, está vendo aquele peixe no aquário atrás do balcão? O nome dele é Arquimedes, foi um presente meu à Rita. Você conhece sua história, a história do matemático?
Pedro Henrique: Não me recordo.
Rodrigo: Arquimedes foi desafiado pelo rei a descobrir se um presente que fora lhe dado era realmente ouro.
Pedro Henrique: E Arquimedes tinha a resposta?
Rodrigo: Não, era um problema insolúvel na época.
Pedro Henrique: E como ele resolveu essa situação? Foi morto pelo rei?

Rodrigo: Arquimedes ficou atormentado, perdeu o sono, e, sua mulher, que era obrigada a dormir ao seu lado, igualmente exausta, lhe pediu que relaxasse e fosse tomar um banho. Ao entrar na banheira Arquimedes percebeu que a água subia. Deslocamento. Eureca! Um jeito de determinar o volume, densidade. E assim ele resolveu o problema...
Rita: Escute o homem, vá para casa e tome um banho. Não existem respostas no caos.
Pedro Henrique: Certo! Ah, Senhor! Está sempre por aqui?
Rodrigo: Sim, rapaz.


(Pedro Henrique sorri e sai de cena, as luzes se apagam.)
















Exercício: considerações pessoais, mais adaptação dos filmes em diálogo de um ato: Pi, o filme (Pi Movie), Despertando para a vida (Waking life), e Eu realmente odeio meu trabalho (I really hate my job).

domingo, 24 de abril de 2011

Só para constar: o príncipe encantado não veio em um cavalo branco te salvar. Mas, olhe para os lados, você está rodeada de reis e rainhas.