domingo, 3 de junho de 2012

O anti-herói

Puta merda, despertador! Às vezes acho que odeio você. Na verdade, acho que a contagem de tempo me irrita um pouco, embora admita sua necessidade. Estou atrasado, vou me enfiar logo naquela armadura. Nossa! Vou fritar nesse sol. Vamos, vamos, preciso comprar uma coleira que já venha com o nó feito. Pronto! As chaves? Onde estão minhas chaves? Puta merda, chaves! Pense, pense... Onde foi a última vez que você mexeu nelas? No banheiro, depois de chegar do bar ontem, tirei-as do bolso para um banho. Banheiro! Preciso escovar os dentes, devo estar com um hálito de comida de urubu. Certo, sapatos, meias, paletó, camisa, calça, gravata, dentes e chaves. Relógio, que horas são? Bom, deveria ter saído há dez minutos. Agora me fale, na verdade, qual é a diferença de 10 minutos na vida de uma pessoa? Afinal, não estou no meu leito de morte – uma ironia esse pensamento, me sinto indo ao matadouro todos os dias de manhã quando vou para o escritório. Nossa, rapaz, olha esse trânsito. Aquela estúpida da Ana, que fica o dia todo construindo a fazendinha do Orkut vai me arrancar o couro. Ela faz isso para demonstrar trabalho: cobra de outros o que não faz para lucrar e fingir que sua gerência atinge metas. Já vi que vou tesourar e costurar os carros o caminho inteiro, vou xingar e ser xingado por uns dez motoristas. Vamos lá, Pedro, você consegue. Certo, depois de buzinas, fechadas e dedos do meio, chego ao trabalho vivo e só aqueles dez minutos atrasado. Já começamos os dias bem tranquilos nessa cidade. Acho que vou mudar para o interior, sei lá, virar fazendeiro, cansei de ser boi. Cheguei na empresa. Agora só falta achar um lugar para estacionar. Talvez se o estacionamento fosse mais barato ou meu salário melhor, eu pudesse guardar meu carro no estacionamento daqui, infelizmente não é o caso. Saco, dez minutos atrasado e já se encheram as vagas. Meu, a Ana vai me matar. Ali, uma vaga. Espera um pouco tem uma placa de proibido estacionar. Eu nunca sei o onde é o começo e o término dessas placas, até o meio eu me confundo nessa. Acho que aqui é o fim, tenho quase certeza. Vamos lá, não tenho muito tempo para pensar. A vaga nem é tão perto da empresa, vou ter que correr. O dia mal começa e eu já estou fedendo igual a um pedreiro que passou o dia numa obra de construção. Bom, agora que cheguei na empresa, é só correr, sentar na mesa e rezar para no caminho não esbarrar com... Ai, caramba! Olha a Ana vindo ai, e eu nem passei pela recepção ainda. – Bom dia, Pedro! – diz – Está atrasado. Por favor, evite que isso aconteça ou vamos começar a somar seus minutos e descontar do Hollerith. – Um ótimo dia para você também, Ana. Fuzilo Ana com severos disparates infames. É lindo, ela me chama de ogro aos prantos antes de sair correndo, tropeçar e cair de pernas para o alto, com aquelas canelas carnudas balançando. Claro, tudo isso na fantasia da minha mente. Concentre-se, Pedro. Devaneio à parte vá sentar-se na sua mesa. Mal sento quando vejo a cabeça de Ricardo sair por cima da repartição de Eucatex que separavam os setores da empresa em uma série de cubículos. – E aí, Pedrão. Já levando um “bom dia” maravilhoso da nossa queridíssima Ana? – Ricardo diz para mim com escárnio. – Ricardo, não há nada mais doce no mundo do que as palavras soltas pelos lábios da Ana. – Se vê que é bem doce mesmo, ela está precisando de um aspartame ou qualquer coisa assim. Ricardo é a pessoa que mais gosto na empresa, um maluco do departamento de marketing, descolado, franco e com um sentimento de humanidade alheio ao resto das cobras desta empresa. Isso deve ser dádiva de espíritos criativos, que enxergam o mundo de outro modo além da cobiça. Talvez nos déssemos bem por conta disso, embora Ricardo seja dotado de muito mais senso de humor do que eu. Fora ele, tenho outros colegas de trabalho, é preciso fazer um network por aqui, e a política da boa vizinhança é muito mais válida para os vizinhos de repartição do que para os vizinhos de rua. Por algumas pessoas é possível sentir uma sincera empatia. É claro, sempre têm algumas piores que as outras, ou são, para mim, simplesmente indiferentes. Por falar nisso... Ih! Lá vem aquele cretino desdentado do Felipe. Tá certo, ele não é um completo desdentado, lhe falam alguns dentes da parte inferior da mandíbula que o obriga a usar uma ponte, uma espécie de dentadura. Felipinho, como é chamado, é o tipo de cara que quando se olha, acomete-se por uma compaixão, mas depois que o conhece, entende-se o motivo de não ter os dentes. Provavelmente não mais por falta de higiene do que um chute na boca. Não tem outra explicação para aquela prótese, o cara nem é muito mais velho do que eu. Deve ser a convivência com a Ana, todos os dias os dois saem para almoçar juntos, e, ambos, não veem a hora de arranjar algum pretexto para puxar o tapete de alguém e promovê-lo. Nada mais justo para Ana; ele seria seu comparsa de trabalho, executaria os mesmos serviços que os seus, ou seja, nenhum. Sou uma pessoa muito ruim por pensar esse tipo de coisa? Não, acho que a sociedade é meio doente mesmo, e depois eu é que devo gastar meu suado dinheiro com remédios caros e terapias. Na verdade nenhum medicamento psicotrópico cura enfermidades sociais. Com certeza, o dia de alguém que trabalha, passa muito mais rápido do que o de alguém que fica enrolando, embora seja extremamente menos divertido e mais maçante. Este dia está sendo muito longo e, agora, praticamente nos minutos finais estoura uma bomba causada justamente pela classificação desatenta deste segundo tipo de pessoas. Três de nossos containers ficaram embargados na alfandega internacional por um erro em sua nota fiscal. Isso vai gerar em um belo de um abacaxi na gerência da Ana. O pior, para a coitada, que caminha agora aos berros para o departamento de exportação: a nota havia sido emitida por Felipinho. Estou vendo o desespero na cara do homem enquanto Ana se aproxima, e sei da sua total falta de despreparo para resolver a questão. Aquela compaixão com o banguela está se apoderando de mim, e até por Ana. Na empresa, e talvez em suas vidas vazias, tudo o que eles têm é um ao outro, aquilo poderia abalar o relacionamento daquelas pessoas. Por um segundo achei que eles fossem dignos da minha pena. Ana se aproximava cada vez mais, com um olhar de raiva e decepção, fixado em mim, e com certa melancolia, em Felipinho. – Muito bem, eu quero saber quem foi o causador desse prejuízo – diz Ana aos berros. Felipinho já estremecia quando eu tomei a palavra. – Ana, pode deixar, já vou entrar em contato com nossos clientes no exterior, vou dar um jeito nisso, o máximo que poderemos ter de prejuízo é a tarifa do espaço onde os containers ficarão locados até serem liberados. Pelo que conheço do cliente, não deve demorar mais do que um ou dois dias. – Então, foi você, Pedro? – no fundo Ana sabe que não, mas mesmo assim balbucia algumas grosseiras quem nem faço questão de escutar e, mais aliviada, vai embora. Felipinho esta atônito, com cara de idiota, para dizer bem a verdade. Acho que a pobreza de espírito dos dois não esperava algo do tipo. – Isso é para ver se você aprende alguma coisa, Felipe. Ao dizer isso, o homem balançou a cabeça incrivelmente com uma cara de idiota pior ainda. Meus dez minutos atrasados foram transformados em duas horas a mais, mas finalmente saio da empresa e me dirijo à rua onde está meu carro. Mas que droga! Meu carro foi rebocado, era início da área para não estacionar. Não acredito no dia de hoje. Agora vou precisar caminhar até o metrô e de lá, na estação Santana, ir para casa a pé. Quero acabar logo com o dia de hoje, amanhã resolvo esse negócio do carro. Sapatos, vamos dar uma volta, finalmente vou gastar um pouco destas solas. Eu não sei se foi o dia estressante, o esporro, ou algo que valha, mas estou começando a me sentir deprimido. O tempo está mudando e encostado perto da vaga onde estaria meu carro, há um morador de rua, isso me deprime ainda mais. Vou tirar meu paletó e jogar sobre seu corpo. Olha aí, campeão. Um presente para você – ai caramba, o homem deitado no chão acordou e está gritando, acho que sua realidade é um bocado hostil para aceitar gentilezas. Só me falta ser agredido hoje. Ufa, parece que ele entendeu a situação. Agora ele ri e diz: “Olha! Olha moço, como fiquei elegante”. O filho da mãe tem mais dentes do que o Felipinho. Já é noite e o asfalto da avenida parece transpirar. Garoa em São Paulo, este suor das ruas é só o choro fraco das nuvens que cai sobre elas. Devo colocar as mãos nos bolsos e comprimir os ombros para evitar o frio. Há uma poça de água que reflete a lua. Por que não olhar diretamente para ela, ao invés dessa poça? A vida é sempre assim, por medo olhamos o reflexo de algo enquanto deveríamos estar o encarando diretamente, poderíamos encontrar o belo. Parece que sempre olhamos para baixo. Caramba, mas que dia. E hoje ainda é segunda-feira. Finalmente, chego ao meu prédio, cumprimento o porteiro, entro no elevador. Enfim, em casa. Fuço os bolsos da calça para pegar as chaves. Onde estão as chaves? Puta merda, estavam no bolso do paletó.



Autor: Thalita Noce
Publicado no espaço do leitor da revista cultura. :p