terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Inacabado

“Costumo dizer que pessoas estranhas atraem, da mesma maneira como se é, situações ou outras pessoas estranhas. Nem sempre é fácil ser assim e aquela história de que ninguém é normal é uma verdadeira balela. Você percebe isso quando as outras pessoas te olham de rabo de olho ou quando as velhinhas atravessam a rua quando te veem. No entanto, às vezes o trágico é cômico e como a irreverência é uma das parentas mais distantes do tedioso marasmo pode-se tirar alguns bons momentos dessa condição. Eu sou uma daquelas pessoas assumidamente misantropas. Não! Eu não gosto de sair. Não! Eu não gosto de viajar. Não! Tão pouco gosto de praia, sol e loucuras de verão. Tenho um aparato de coisas em casa que substituem o mundo lá fora, inclusive, meus diversos alter-egos transformam-se facilmente em amigos imaginários. Para ser um velho ranzinza só me falta um pouco mais de idade.
Podem acontecer, e de fato acontecem, pequenos lapsos. Rompimentos na integridade basilar da misantropia. Não poderia ser diferente, qualquer forma de perfeição resume-se a mera utopia. E foi nessa ruptura, quando estava deitado no afago de uma melancólica companhia, que vi um homem de aspecto pouco amigável no centro do cômodo que irritado me expulsou da alcova. Tédio é um sujeito mal-humorado, seu jeito intragável deixa-me com os nervos a flor da pele mesmo em suas visitas esporádicas. Não pude acreditar ao vê-lo, quis distância dele, de sua conversa mole, sua preguiça, sua falta de gosto... Ah! Levantei-me bravejando e pus-me para fora de casa. Caminhei em direção a um desses lugares noturnos de praxe: escuro, lotado e com uma música ruim gritante. Mal depositava o peso do meu corpo sob o chão daquele local e uma onda de calafrios e desconforto invadiu minh ‘alma. Olhei para trás pensando em voltar, mas Tédio me esperava na porta. Eu o encarei, franzi a testa e, continuei a penetrar ainda mais naquele universo. Perto do bar, avistei do outro lado de balcão uma mulher de cabelos negros e esguia; do rosto pálido destacava-se um batom tão forte quanto o sangue. Perguntei seu nome – Desespero – ela respondeu enquanto servia o rapaz ao lado. O rapaz tinha os poros de seu rosto banhado em suor, olhos vagos e carregava no rosto um sorriso de incoerência.
Sente-se – disse Desespero voltando-se para o bar – eu vou te dar uma dose de insanidade. Minha cabeça já girava, as luzes piscavam rápido demais; contestei a necessidade de beber algo, mas a voz de Desespero sobressaia a minha. O que vou beber? – perguntei – ela deu de ombros e continuou a mexer em suas grandes garradas vermelhas sem responder. Não demorou muito para estender fronte a mim um drink escarlate dizendo – uma dose do inferno. Segurei a mistura sem muita firmeza e, encarando Desespero, tomei de seu copo como se a desafiasse. Mal acabara de beber quando meu corpo estremecendo caiu para o lado, levantei-me; mal conseguia andar, mas precisava achar a saída. Foi então que avistei Tristeza, uma dama sem expressão e de olhos fundos, parecendo uma noiva abandonada debruçada sobre meu corpo titubeante. Perguntava-me porque havia abandonado seus afagos e trazia consigo uma injeção; um remédio ela dizia, para curar-me do Desespero. E eu sentia as agulhadas pontiagudas de Tristeza. O efeito parecia ser oposto do planejado, de maneira que, em um impulso de sobrevivência, a empurrei junto com seu remédio. Levantei-me, tomei distância e andei como pude para uma área aberta à procura de ar. Mais calmo, observei as pessoas e pude até rir de sua felicidade, sua alteração e embriaguez. Minha pele ainda soava quando aproximou-se de mim um sujeito de preto. Começamos a conversar e, enquanto conversávamos, escutava outras vozes me chamando, mas Tristeza, Tédio, Desespero, foram expurgadas pelo cansaço da espera.
Quando estava calmo o suficiente notei a roupa preta daquele rapaz. Uma batina? Aquilo não poderia ser a única coisa real naquela noite. “