domingo, 22 de agosto de 2010

MARA CONTI



O homem que lembrava demais

Trimmmmmmm, plact, aaaaaaaa; mais um despertar, de mais um dia cheio de detalhes, barulhos, acontecimentos e sensações. Desligou o despertador, levantou da cama e abriu a janela com a esperança de que, especialmente naquele dia, a sorte adentrasse e alguma coisa muito surpreendente acontecesse bem diante de seus olhos. Olhou profundamente cada canto do apartamento, contou os furinhos da parede, ajeitou dois quadros, ligou e desligou a TV três vezes e antes que qualquer novidade lhe atrapalhasse a rotina, saiu sorrateiro.
No elevador o cheiro era de uma segunda-feira ensolarada, a maresia conseguia penetrar os portões e chegar ao hall do prédio. Andou cinco quarteirões, duas travessas, 37 lojas e 13 casas, enfim chegou ao escritório. O tilintar das teclas sempre era o primeiro som que chegava até o ouvido, os rabiscos faziam um som agradável, principalmente as assinaturas que na maioria das vezes acabava com dois pingos.
Era tudo sempre igual, às vezes parecia repetição: despertador, cama, janela, elevador, rua trabalho, computador, assinaturas, canetas...Só que a cada dia Aurélio observava um detalhe novo, um som, um cheiro, um furo maior na parede. Muitas vezes as pessoas iam sumindo ao fundo, como nas pinceladas de Van Gogh. Um emaranhado de pessoas que se tornavam cenário para coisas tão pequenas, verdadeiros detalhes do dia a dia.
Aurélio já não conseguia se concentrar nas coisas que a sociedade, geralmente, trata com alguma importância. Fonseca o chamara em sua sala, ele levantou-se apático, e foi. Bom dia, sndnfghfugigurtr xxxxxxxxx lfuigjhohtihutr kxkxkx o relatório. Caramba, o que foi que ele disse, só entendi a última palavra, preciso me concentrar mais, e agora, volto lá? tento não olhar para os Monets falsificados, e para a poeira que formou uma espécie de espelho nos dois porta-retratos em que estavam em cima da mesa?...Ah, ele vai me chamar de novo, e dessa vez vou prestar atenção nas palavras e não nas quinquilharias.
Passaram-se duas horas e ele observou que a copeira preparava a sala de reuniões, foi quando se lembrou do pedido de Fonseca: o relatório contendo orçamentos para a reforma da nova sede do escritório. Tarde demais, a única alternativa que conseguiu pensar naquela situação fora a dor de barriga, que o atacara subitamente sem chance de reação.
Quando saiu do escritório, os sons estavam irritantemente altos, os carros buzinavam sem ninguém dentro e tudo o que enxergava eram borrões de cores, que julgava ser o colorido das roupas das pessoas. O caos que tanto o amedrontava ganhava traços das telas de pintura, as quais passava horas e horas observando, talvez seu único hobby que verdadeiramente fazia com prazer.
Começou a andar rápido, correr, fugir, sumir. Chegou em casa e o barulho havia penetrado pelas paredes, estava em tudo. Os armários rangiam, a pintura ganhara novos furos em apenas algumas horas. As torneiras dos vizinhos pingavam, a descarga, o chuveiro, quantos passos, tem 3 cães nesse andar, dois bebês, lá embaixo tem um porteiro, zelador. Tem alguém gritando: Pega o balde! O Jerson está? Já avisei que viria receber. Toc, toc, toc, é o correio, tem alguém de salto muito alto no apartamento de cima. Que inferno, não consigo parar de ouvir, silêncio, silêncio...e adormeceu.
No dia seguinte Aurélio lembrou de cada detalhe do dia mais ensurdecedor de sua vida. Ufa, passou, ainda bem.
No trabalho, se desculpou com o Fonseca que aproveitou o ensejo para pedir-lhe mais um relatório. Sentou-se e começou a digitar cada palavra que saiu da boca do chefe. Repetia incansavelmente todos os dizeres, prazos, datas, preços. Fez o trabalho em duas horas e passou as outras sete repetindo tudo o que continha nas 13 páginas. Cada aspas, cada vírgula, e o pior, cada centavo.
Não, mais um dia de cão e vou enlouquecer. Chegou em casa e escreveu muitas vezes os pedidos de Fonseca. A voz do chefe ecoava em sua memória e parecia não ter fim. Cada palavra ficava cada vez mais alta e com som distorcido. Chega, para de falar, Fonseca!
Depois de seu segundo pior dia, saiu para trabalhar, e estava decidido: - Fonseca, me demito!
Que sensação boa, não lembro de nada, as coisas estão em seu ritmo normal. Ele teve a certeza de que o trabalho o estava enlouquecendo e, enfim, se livrara do problema, sua mente estava tão vazia, sem ter que pensar nem lembrar de nenhuma futilidade. O lugar estava claro e iluminado, todos estavam vestindo branco, estava tudo tão perfeito.
Fonseca despediu-se atordoado com tantos pensamentos, pôxa, porque fui pedir aquele relatório.


AUTORA: MARA CONTI
PARA MAIS TEXTOS ACESSE: http://maraconti.blogspot.com/

Um comentário:

  1. Thatá, obrigada por guardar e divulgar esse conto. Acredita que não estava encontrando em ligar algum?
    Bjs
    Mara

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