domingo, 23 de maio de 2010

O conto dos ossos


Referência musical:
Tchaikovsky - Dance Of The Sugar Plum Fairy


Não sei bem como começar, nunca sei. Por vezes acho que o melhor a se fazer é escrever mil vírgulas e mil interrogações tão sem nexo quanto o que se passa em minha cabeça. Ora, e por que mil vírgulas e não cem, já que nelas não há sentido algum? Por que tamanha perda de tempo? Porque o número cem seria pouco para ilustrar o turbilhão que preenche o músculo central do meu peito, quiçá mil também não seja. É quase certo que sim. O problema é sempre esse; quando se tem muito a dizer, a dificuldade de ordenar as ideias é tamanha que elas não tendem senão a uma inerente perda de controle. Não! Não, não, minha lógica se perde na resposta antes mesmo de finalizar sua pergunta. Para usar de toda a franqueza, como o sábio que nunca fui, confesso, talvez não haja nada a ser dito, e sim muito a ser sentido. Concluo que perco tempo demais me perdendo, sim dando ênfase a perdição, quando deveria estar vivendo.
Me desculpe! Talvez eu deva começar pelo meu nome – Skhízo, encantado. Agora, vamos aos motivos que me trazem aqui, eis o desfecho que levará o meu caro entender a sandice que faz uma pessoa discursar sobre o nada, assim como Erasmo fez em seu elogio a loucura.
Era uma dessas tardes comuns, coloquei-me aos degraus da soleira, ao fundo de minha casa, carregava nos braços um livro cujo título anunciava-se em grandes letras vermelhas como “dicionário humano”. Nunca havia pensado a respeito do eu separado, folheava as páginas atento ao seu conteúdo; pousou-me então, em meu livro, sobre a testa do modelo humano observado, uma mosca. Ah! Seu zunido entorpecia meu raciocínio, seus olhos, seus milhares de olhos, giravam os meus próprios, fazendo com que a ilustração embaçasse, girasse, voltasse a si, me sugasse; penetrasse meu eu direto à suas entranhas. Vejo-me então, em uma tela negra, de aspecto antigo, que exibe uma medicina arcaica. A vertigem circular estabilizou-se em uma película antiga. Será Possível? As asas da mosca bateram tais quais as da fada que inspirou Tchaikovsky? – pergunto a mim mesmo. Veja lá, caro espectador, meu esqueleto, arqueado, ossos ligados a cartilagens que possibilitam as articulações de meus passos. A cintura fazendo ligação entre o apendicular e o axial, superior e inferior. Há lá uma gaiola de costelas torácicas que prendem meus pulmões e coração. Ligados ao arcabouço deste corpo estão meus músculos que, neste filme bizarro, separam-se para ilustrar seu funcionamento. Os músculos fazem um balé, descolando-se do endoesqueleto, a plateia, com seus rostos pálidos, ofuscam a escuridão com espanto.
Os músculos viscerais, estômago, intestino; órgãos, eis outra categoria, separam-se também. Cada sistema próprio exercendo sua função, células mononucleadas, polinucleadas, com espasmos, movimentos involuntários, com todo um organismo prático que faz com que este grande mecanismo chamado homem tome vida.
De onde vêm meus sentimentos, minha realidade? Quais são as verdades, Protágoras? Perco-me do todo! Meus valores estão desmembrados, vou buscar nos neurotransmissores a razão; como circuitos, ligando-se em redes neurais, tento encontrar a resposta, a negação do eu como máquina. Endorfinas, anfetaminas, anceolíticos, acalme-se. As químicas cerebrais viciadas em certas sensações encontram-se em desespero. Perco-me do todo, os olhos da razão saltam da orbita, não consigo me reestruturar. Pensamentos soltos, intangíveis; mente, alma, máquina, homem, homem maquina, Deus, arquiteto, criação; ligue os impulsos elétricos às vontades de tua alma.
Minha inteligência torna-se tão abstrata quando a de um recém-nascido. Tudo é desmembrado, os objetos, meu corpo. As formas perdem-se de seu conjunto, anulam-se os objetos, perco a noção do eu, do você, meu pânico é instintivo, os pulmões hiperventilam, mas os pulmões não são os meus, estão na tela, a visão começa a entorpecer – a minha, ou o filme que se passa neste grande palco?
Estava zonzo quando desceu, pousando sobre meu nariz, a fada dos milhares de olhos, meu peito encheu-se de alegria ao ver novamente, à medida que acordava, todas as cores. Como me fazia feliz, ao apalpar-me, perceber meu conjunto unificado como um todo, não como um mecanismo, e sim uma divindade. A felicidade da ignorância das frações supriu o medo de entendê-las. O meu despertar foi para uma vil conclusão; no final, não há o que se explicar, há o que se sentir, conclusão tão vil que possa ter sido em vão.

O Conto dos Ossos
Autor: Thalita Noce
Publicação: Antologia Delicatta V, Editora Scortecci - São Paulo.

2 comentários:

  1. ahaaa... este eu já li... antes de aqui estar!!! uhuu.. me sinto privilegiada!!! tchurururu...
    e bom.. o que dizer se já disse tudo... adoro seus contos... me sinto numa montanha russa... e no final fica aquele gostinho de quero mais..

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  2. Honestamente, foi uma brilhante descrição da incessante busca pelo "Quem sou eu?".
    Muitíssimo bem escrito, o conto carrega junto o leitor da mesma forma que o protagonista foi absorvido pelo seu livro.
    Parabéns!

    E a trilha sonora é ótima, a propósito! =)
    Apesar de eu ser doentiamente viciado no 4º ato da 9º Sinfonia =D

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